Não existe cordão umbilical assassino

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Imagem daqui

Hoje de manhã, recebi o e-mail de uma amiga querida com o link  dessa notícia. No Pará, após receber a notícia da morte de bebê, família descobre um corte grande no seu corpo ocasionado pela cesárea. Os médicos alegam que o bebê já nasceu morto devido a três circulares de cordão e que o corte pode ocorrer em cirurgias de emergência e que não é nocivo para o recém nascido.

Absurdos à parte, vamos ao que interessa: bebê nenhum morre estrangulado ou asfixiado pelo cordão umbilical. Isso é lenda urbana inventada pra vender cesariana pra mulher saudável. E é algo tão presente no inconsciente coletivo que as pessoas não param um segundo sequer para refletir que o bebê no útero não respira pelas vias aéreas. Pois é, o bebê recebe oxigenação do cordão umbilical, esse mesmo que se enrola no seu tronco, braço, pescoço… afinal, o bebê se movimenta o tempo todo na barriga da mãe; seria um pouco improvável que ele nunca interagisse com o cordão.

Aliás, uma curiosidade. O Brasil é o único país em que aparece “circular cervical de cordão” em laudo de ultrassonografia e em laudos que justifiquem a cesariana.

Portanto, voltando à notícia. A  morte do bebê pode ter ocorrido por diversos fatores, como negligência médica, demora em atender à parturiente (ela foi esquecida de um dia para o outro no hospital), o próprio corte provocado pela cesárea ou vontade de Deus – para quem acreditar. Mas por favor, não venham dizer que o bebê morreu por cordão enrolado no pescoço. Isso não existe.

A enfermeira obstetriz Ana Cristina Duarte escreveu um texto excelente sobre circular de cordão. Para ler, clique aqui ou aqui (publicação do dia 21 de junho). Leiam e divulguem, ele é de utilidade pública! Esclareçam os que estão à sua volta.

E, para quem ainda não se convenceu de tudo que eu escrevi, aqui vai um vídeo de parto natural onde o bebezinho nasce lindo e saudável com 5 circulares de cordão AND mecônio (assunto para um outro post). Simples e lindo assim.

E a revolução inicia: Wanessa Camargo pare naturalmente após cesárea

wanessa

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Olha, vou confessar… não sou fã da Wanessa Camargo. Não sei cantar uma música de seu repertório, nem sei onde ela passou as férias do ano passado. Mas agora li uma notícia dela que me encheu de alegria, poderia até dizer que temos algo em comum.

Vi agora na internet: nasce de parto normal segundo filho de Wanessa Camargo. “E o que isso tem de mais?” – perguntam. Tem muita coisa, meu povo! Muita coisa mesmo, que acende uma chama de esperança nessa ativista que escreve.

Wanessa teve seu VBAC, sigla em inglês para vaginal birth after cesarian, que em português significa parto vaginal após cesariana. Muitos médicos dizem erroneamente que uma mulher que passou por cesariana uma vez, terá de se submeter a essa cirurgia sempre, por risco de ruptura uterina em caso de parto normal. Hoje, existem publicações científicas que varreram para longe essa teoria. De acordo com a medicina moderna baseada em evidências, é muito mais seguro para mãe que teve uma cesariana prévia o parto normal. Profissionais envolvidos com a humanização do parto sabem e divulgam que a máxima “uma vez cesárea, sempre cesárea” caiu por água abaixo. A médica Melania Amorim, PhD em obstetrícia humana, explica melhor sobre o que estou escrevendo aqui no seu blog. Vale a pena dar uma passada lá.

O fato de Wanessa ter conquistado seu VBAC sugere que ela nadou contra o sistema. Sambou na cara de muito médico antiquado que por comodismo ou interesse financeiro, induz a paciente a marcar uma cirurgia. Ela se empoderou, buscou informações e não deu ouvidos a palpiteiros. Parir é seguro e ela estava certa disso. O protagonismo sobre seu corpo foi dela, e não do médico. E isso vindo de uma pessoa pública é muita coisa para o nosso sistema obstétrico atual.

Em meio a artistas globais que agendam seu parto para aparecer maquiada e de escova feita na revista Caras, Wanessa mostrou que parir não é coisa de pobre. Parir é coisa de mulher – qualquer mulher.

Wanessa, tamo junto. Parabéns.

“Fica quieta, mãezinha” – Você sabe o que é violência obstétrica?

“Durante um exame de toque, eu pedi para parar pois estava sentindo muita dor. O médico disse: “na hora de fazer tava gostoso, né?”.  Nessa hora me senti abusada.”
F. atendida na rede pública em São Paulo-SP**

“Senti meu corpo totalmente exposto, me sentia um rato de laboratório, com aquele entra e sai de pessoas explicando procedimentos me usando para demonstração. O médico mal falou conosco, abriu minhas pernas e enfiou os dedos, assim, como quem enfia o dedo num pote ou abre uma torneira.”
A.F.G.G., atendida na rede pública em Belo Horizonte- MG**

“Depois de passar o tempo todo deitada na maca, pois não me permitiram me movimentar para ajudar no trabalho de parto, sem poder beber ou comer, com ocitocina no soro, sem acompanhante, fui para mesa de parto, amarraram minhas pernas, uma enfermeira subiu em cima da minha barriga e minha filha nasceu. Só depois de 7 horas após o parto levaram a minha filha para eu conhecer.”
R.R.S.V. atendida na rede pública em Belo Horizonte-MG**

Converse com uma mulher que teve parto normal na rede pública de atendimento. Pergunte como foi tratada pela equipe, se ela se lembra dos detalhes do dia, das emoções pelas quais passou. Ou melhor, se você é mãe, reveja o seu parto sob esses aspectos mencionados. Qual o seu sentimento?

Por incrível que pareça, a grande maioria das mulheres não têm uma lembrança positiva do dia do seu parto, momento que deveria ser sublime e inesquecível. Muitas saem da maternidade com um sentimento estranho, de que algo deu errado ou que não saiu da maneira como deveria ser. Não sabem interpretar as sensações, pois deveriam se sentir felizes pelo bebê em seus braços. Mas nem sempre acontece assim. O sentimento de inadequação é comum porque essas mulheres foram vítimas de violência e nem se dão conta disso.

parto

De acordo com a Fundação Perseu Abramo na pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010, 25% das mulheres sofrem algum tipo de violência ao dar à luz. Entretanto, os profissionais envolvidos com o movimento de humanização do parto estimam que a porcentagem seja muito maior do que a publicada, pois na nossa sociedade, práticas médicas desrespeitosas e invasivas são consideradas rotina no atendimento ao parto, não sendo percebidas como abuso pelos pacientes e acompanhantes.

Define-se violência obstétrica como qualquer prática abusiva dirigida à parturiente, podendo ser de ordem física ou moral, com o intuito de tirar da mulher a autonomia sobre seu próprio corpo e o seu parto. A vítima pode vir a desenvolver depressão pós parto, traumas físicos e psicológicos. De modo geral, pode-se citar como exemplos de violência obstétrica:

  • Impedir a mulher de comer ou de beber água
  • Impedir a mulher de se movimentar para encontrar posição mais confortável
  • Deixar a mulher sozinha durante o processo, descumprindo a lei do acompanhante ( Lei 11.108/2005)
  • Dirigir-se à parturiente de maneira grosseira, ofensiva ou debochada
  • Não respeitar a intimidade da mulher, expondo-a a situações constrangedoras (como deixá-la nua e de pernas abertas de frente para um corredor ou demonstrar exame de toque para grupo de residentes)
  • Negar procedimentos para alívio da dor
  • Praticar qualquer procedimento sem explicação e sem o consentimento da mulher, como raspagem dos pelos, lavagem intestinal, exame de toque, episiotomia, acesso venoso com ocitocina sintética (o famoso sorinho)
  • Efetuar a manobra de Kristeller (subir na mulher e empurrar sua barriga para baixo, forçando o bebê a sair, prática extremamente dolorosa e não recomendada pela OMS)
  • Oferecer atendimento infantilizado e impessoal (chamar de mãezinha, dizer que ela não vai aguentar, que não é capaz)
  • Repreender a mulher por gritar ou gemer

E tem as frases clássicas e humilhantes, que entram no âmbito da violência verbal e terror psicológico:

  • Na hora de fazer não doeu/não gritou/não pediu ajuda/tava gostoso
  • Não chora não que ano que vem você tá aqui de novo
  • Se você gritar, eu paro o que estou fazendo e não te atendo
  • Se você continuar gritando, seu bebê vai nascer surdo
  • Faz força, mãezinha, se demorar muito você vai matar seu filho
  • Se você não ajudar, seu filho vai morrer e vai ser culpa sua
  • Vou te costurar e dar um ponto a mais pro seu marido ficar feliz

Na Argentina e na Venezuela, a violência obstétrica é reconhecida como um crime e já existe na legislação dos dois países espaço formal para denúncias. No Brasil, ainda estamos engatinhando para uma conscientização da população leiga e dos profissionais da área da saúde sobre o conceito de violência obstétrica. O recorrente é se pensar apenas no resultado do processo, que o importante é o bebê nascer com saúde e a mãe não vir a óbito. O que acontece nos bastidores do parto  não tem importância, e se a mãe estiver insatisfeita, deprimida ou com dor, é frescura de sua parte. Ou seja: além de ser violentada, a mulher não recebe acolhimento e não tem sequer o direito de ficar triste.

violência obstétrica

É espantoso constatar que tem muita gente que acha esse tipo atendimento obstétrico normal. Já li casos em que a mãe ou a avó aconselham a neta a não gritar e a obedecer aos médicos e enfermeiros para eles não judiarem dela no hospital. Essa é uma prova de como a violência contra a mulher é banalizada nos meios sociais. Não podemos aceitar isso, violência não é e não pode ser nunca um procedimento padrão.

Não me assusta o fato de que as mulheres que passaram por um parto violento optem por fazer uma cesariana na próxima gestação. O trauma é tão grande que, infelizmente, muitas rezam para não passar pela experiência novamente. Pensando friamente e comparando as duas opções (parto “normal” cheio de intervenções desnecessárias e violência X cesariana), eu também escolheria uma cesária. É muito mais simples: basta marcar um dia e um horário, chegar no hospital que o meu plano de saúde cobre, receber anestesia, ser cortada e pronto. Sem sofrimento, sem xingamento, sem humilhações.

Gestante, informe-se. Não é normal gritarem com você. Não é normal fazerem exame de toque fora do trabalho de parto e sem te avisar. Não é normal se sentir ofendida, envergonhada, acuada. O parto não é do médico. Médico nenhum “faz” parto; o natural é a mulher e o bebê juntos fazerem todo o trabalho sozinhos.

Se você já sofreu ou conhece alguma mulher que foi vítima de violência obstétrica, denuncie. Procure ajuda. Você pode ligar 180 (violência contra a mulher) ou 136 (disque saúde).

Para saber mais:

Você pode acessar o site da Artemis, grupo formado por profissionais comprometidos em erradicar qualquer tipo de violência contra mulher. Lá você receberá acolhimento, poderá fazer sua denúncia e receberá orientações sobre como proceder.

Esse link aqui contém um pequeno -porém excelente – manual sobre violência obstétrica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Vale a pena ler e divulgar.

Por fim, assista ao documentário “Violência Obstétrica- a voz das brasileiras”. É um documentário popular produzido por Bianca Zorzan, Lígia Moreiras Sena, Ana Carolina Franzon, Kalu Brum, Armando Rapchan. Nele contém depoimentos que retratam a triste realidade obstétrica brasileira.

** Depoimentos retirados de “Violência Obstétrica- Parirás com Dor”, dossiê elaborado pela rede Parto do Princípio. É um material excelente, recheado com referências científicas e recomendações da OMS. E o melhor de tudo, com linguagem acessível e material gráfico. Vale a pena dar uma olhada aqui

O Renascimento do Parto e o dia em que me assumi ativista

Semana passada, teve a exibição do documentário O Renascimento do Parto na cidade em que moro, seguido de debate com a presença da obstetra Carla Andreucci Polido e da enfermeira Jamile Claro de Castro, ambas docentes da UFSCAR.

No cartaz de divulgação, estava escrito que o público alvo eram profissionais da área médica que atuavam na assistência ao parto e ativistas. Como não sou médica, nem enfermeira, nem doula ou algo do tipo, pensei em não ir. O que que eu vou fazer lá? Mas fiquei com a pulguinha atrás da orelha, me coçando de vontade de ir. Ah, vou dar uma de desentendida e vou… sou ativista de sofá, um pouco tímida, mas acho que tá valendo – pensei. E fui. E tinha que preencher um papel com seus dados e o nome da instituição a que você é vinculado. Coloquei o endereço desse blog (louca), entreguei a prancheta e tomei meu lugar no auditório.

Sim, acho que foi nesse dia que resolvi me assumir como ativista. Afinal, venho estudando o assunto por conta própria há quatro anos. E cada vez, fico mais maravilhada e mais incomodada com a realidade que se revela para mim.

Assisti ao documentário pela segunda vez e chorei como chorei na primeira vez. É triste, é forte, é revoltante. É impressionante como esse assunto mexe profundamente comigo, mesmo sem eu ser mãe ainda. Toda a energia do local me tomou. E dessa vez, foi interessante prestar atenção na reação da plateia diante de algumas cenas. Rostos contorcidos e suspiros sem fôlego quando mostravam cesarianas. Burburinho quando mostrava os recém nascidos sendo manuseados como frangos. E risos nas cenas de parto natural, enquanto mães e bebês trocavam seu primeiro olhar amoroso de reconhecimento – o famoso imprinting.

Também reparei em algumas expressões usadas no documentário repetidas vezes, como linha de produção, sistema, mercadológico, indústria do nascimento. É isso o que o parto se tornou hoje.

E, durante o debate, a sala já tinha se esvaziado. Alguns vereadores e obstetras foram embora, talvez com medo da realidade óbvia: nosso sistema de assistência ao parto é falho e precisa de muito trabalho para ser modificado. Algumas mulheres deram seus depoimentos. Foram  relatos de desrespeito médico, agressão verbal, de violação dos direitos da parturiente. Triste demais. Para mim é absurdo que mulheres saudáveis sejam coagidas a agendar uma cirurgia por pura conveniência médica. E isso é muito mais comum do que imaginamos. Já aconteceu com sua tia, sua prima, sua vizinha, sua irmã, talvez até com você.

A coação não é direta. Ela ocorre sutilmente consulta após consulta por meio de frases soltas com o intuito de anular a confiança da mulher em sua capacidade de parir. Acha isso muito absurdo? Pois é só averiguar a taxa de partos vaginais atendidos pelo médico bonzinho que te viu crescer, amigo da família.

Não é o mimimi de parto normal x cesárea, “não sou menos mãe porque não pari”, blábláblá… Isso é questão de saúde pública. É grave. A Organização Mundial da Saúde preconiza que a porcentagem aceitável de cesarianas não ultrapasse os 15%. No Brasil, esse número é de 54% na rede pública e de impressionantes quase 90% na rede privada.

Até quando teremos mulheres com o ventre cortado desnecessariamente? Bebês prematuros, retirados antes da hora do útero. Recém nascidos sozinhos em berços aquecidos que fazem as vezes do braços acolhedores da mãe.

Esse é o trailer oficial do documentário:

 

E deixo aqui o link de um texto da brilhante Gabi Sallit sobre o resultado da pesquisa Nascer no Brasil divulgada esses dias.  Leiam , assistam, questionem sempre.